quinta-feira, 21 de julho de 2011

Lavanda, rendas e fumaça

A tarde já caía e logo mais a casa já começaria o seu movimento rotineiro. Ao chegar da noite, ela começava a sorrir com suas luzes fluorescentes, seu assoalho gasto dava boas vindas ao pés, lençóis cheirando a lavanda atraíam olfatos perdidos à distância. No bar, o cheiro do whisky barato se misturava com a fumaça densa dos cigarros nervosos: aguardavam ansiosos as recompensas que foram buscar depois de um dia de cão. No andar de cima, a movimentação era grande. Rendas vermelhas, pretas, brancas; as francesas, inglesas, belgas, e aquelas da lojinha da esquina. Mulheres de todas as formas, cores, cheiros, tamanhos, passeavam carregadas com uma mistura de lascívia e concentração para o ofício. Portadoras de truques e toques, elas iniciavam o ritual de todas as noites: os trajes suntuosos em seus corpos sedutores, os seios à vista, a maquiagem destacando o olhar faminto, as cores exóticas dos esmaltes para que as garras ficassem em destaque para serem notadas por suas presas. Os feromônios exalavam um cheiro forte no primeiro andar.

Dentre elas, uma mereceu destaque em minha prosa. Ela parecia estar menos agitada que as outras. Estava em seu quarto, em frente a sua penteadeira, inerte, em transe. De todas as pequenas daquela casa, ela sem dúvida arrebataria qualquer coração vagabundo em questões de segundos. Sua pele dava fome, suas curvas, saciedade a um guloso. Gleika era o pecado materializado. Era o sonho de consumo dos bons pagantes e frequentadores daquela nobre (para a vizinhaça, nem tão nobre assim) casa.
Mas hoje ela estava diferente. Suspirava, olhava inquieta para seu reflexo, olhava as meninas excitadas e inquietas no corredor. Retocava um detalhe ou outro da sua maquiagem quase pronta, acomodava os seios um pouco mais. Tentou se desligar um pouco do pensamento que disputava sua atenção, mas em vão. Acontece que em Gleika havia brotado a erva daninha do querer exclusivo; paixão na linguagem dos que gostam de ser mais poéticos.

Querer ou paixão, o fato é que o mal queria enraizar. Sapatiava, cavava, arranhava. Tentava qualquer coisa para ganhar espaço na moça. Confusa, descuidava-se, baixando a guarda para as memórias daquele homem, o único homem que, em anos de ofício do prazer, a fez desfrutar completamente da condição de ser mulher, carne e gozo. Ele não a quis comprar com jóias. Não tentou ser galante. Era ignorante, bruto; barba por fazer, e uma tatuagem antiga no braço. Acha que era marinheiro mas não importa. Não lhe perguntou o nome; não foi perguntada. Também nem houve tempo de perguntar: aquele bronco invadiu-a de uma forma e expôs uma parte dela que nem a mesma conhecia. Delirou em seus braços peludos, gemeu com sua força. Fez-se mar, correnteza, lua, ondas. Ondas de calafrios. Calafrios de uma sensação violenta. Cerrou os olhos e dormiu.

Desligando-se das memórias vivas e voltando para o agora, olhou outra vez sua imagem no espelho. Decidiu acender um cigarro para afastar os pensamentos. Depois levantou-se, desceu para o grande salão. Flertou, olhou, provocou, bebeu, gargalhou e foi escolhida. Subiu ao quarto com o seu convidado e o mostrou o porquê era a mais cobiçada entre as moças da casa nobre. Quando terminou o serviço, selou seu corpo em um roupão de cetim e o conduziu até a porta. O pagamento lhe foi generoso. Acendeu mais um cigarro e tomou um gole do whisky barato.

Foi então que sua razão se fez mais forte. Quem já viu o querer exclusivo sorrir para uma puta? Isso era coisa de folhetim. Estava apenas vislumbrada com uma perfomance. Além do mais, lembrou que numa das conversas que se tem à tarde no grande salão, quando as meninas são apenas meninas, alguém contou-lhes o que era mais ou menos a paixão. Explicaram que é um sentimento que te leva a extremos: ela agride, bajula, preenche. Rasteja, te engole, te humilha, te afasta, te junta e separa de novo; te adoece, empacota, vomita, remenda, cozinha; te amarra, te prende, te enrola, te apaga. Te faz obedecer e desobedecer. Madruga.

Tragando lentamente o cigarro e lançando a fumaça no ar, Gleika livrava-se aos poucos da erva daninha que tentara instalar-se em seu peito. Os romances de folhetim nunca combinaram com seus olhos famintos de corpos, cheiros, gosto; de mundo.